#3 – Um “bom” par de botas

A história das botas do Carlos

As alpercatas, os tamancos, as botas ou os sapatos 

Como muito boa gente sabe, por experiência própria em alguns casos, ou por terem ouvido este género de histórias aos seus pais, avós, outros familiares e/ou conhecidos, nas terras do interior do país, até à década de 80 do século XX, viveu-se uma época fértil de histórias como as que estamos a contar. Em Portugal vivia-se com muita pobreza, salvo raras exceções de algumas famílias, que eram considerados “os senhores” nas terras onde viviam. Ter umas alpercatas feitas com a sola de pneus velhos ou uns “tamancos” feitos com madeira, conforme as zonas rurais das regiões do país, não era para todos muito menos para os mais novos (as crianças).

Este inverno não vai haver frio que me entre nos pés!

Retomando a história do Carlos, o rapaz que foi “professor por quatro dias” e que com afinco, aguçado pela curiosidade, pela vontade de saber e ajudado pelo facto de ter boa capacidade de raciocínio e uma memória particularmente desenvolvida, era o aluno mais brilhante que a exigente professora Ofélia se lembrava de ter tido.

Livro da 2ª classe dos anos 60 do século XX

Nessa época muitas eram as crianças que, independentemente da altura do ano e/ou da temperatura (verão ou inverno, chuva ou tempo seco), andavam descalças. O Carlos tinha umas alpercatas, em tempos feitas pelo “Tonho Sapateiro”, já gastas que não impediam a passagem da água e no Inverno até lhe deixava os pés mais enrugados que a pele de um octogenário.

Um dia, no início do inverno, ao chegar a casa, esperava-o uma grande surpresa. O pai tinha-lhe comprado um par de botas. Que bom, pensou o Carlos. Este inverno não vai haver frio que me entre nos pés!

Mas, as botas que tinham sido arranjadas por um primo de fraca compleição física e pé curto que estando no cumprimento do serviço militar, por lá as tinha desencantado, com a intenção de as vender para arranjar uns trocos para os bilhetes da carreira quando conseguia arranjar uns dias de folga que o sargento-chefe lhe dava como compensação do zeloso serviço que prestava na limpeza da cozinha, onde era ajudante. Diziam as más línguas que o serviço dele era descascar batatas. Fosse ou não fosse, coisa rara, lá se safou sem ir ao “Ultramar”.

O Carlos tinha um irmão mais velho, corpulento e com uma grande “xanca”, como se costumava apelidar os pés quando eram grandes. Era para ele que as botas estavam destinadas, mas não lhe serviram. Para não perderem o investimento, logo o pai sentenciou que as botas seriam para o Carlos que as olhava um pouco apreensivo, por lhe parecerem grandes, até que chegou a intervenção da mãe, que lhe disse: Para onde estás a olhar? Anda, calça lá as botas!

Cumprindo ordens, o Carlos libertou-se das alpercatas e enfiou os pés nas botas ensaiando uns passos para ver como lhe ficavam. Foi com grande tristeza, e deceção, que verificou que as botas não saíam do mesmo sítio quando mexia os pés. As botas eram muito grandes!

A mãe tentando salvar a situação, ainda lhe disse: isso resolve-se apertando muito bem os atilhos e metendo umas palmilhas.

Já quase a chorar, por ver que ia ficar sem botas, apertou tão bem os atacadores que até os ilhós se sobrepuseram, mas desta vez, com esforço, as pesadas botas, aos solavancos, lá foram acompanhando o movimento dos pés. Mas o Carlos pensou, peço à minha avó que é muito minha amiga, que me faça umas meias de lã bem grossas para ajudar a aconchegar os pés e com umas palmilhas de cartão fica resolvido. Pensou nisso e já com as botas calçadas disse à mãe que as ia mostrar à avó. Saiu de casa a correr, o que não era nada fácil com aquelas botas.

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Entrou em casa da avó um pouco triste e contou-lhe o que se passava, as botas não serviam ao irmão mais velho e por isso ficavam para ele, mas eram-lhe muito grandes. – Avó não me fazes umas meias de lã bem grossas para ver se os pés ficam melhor dentro das botas?  A avó disse-lhe: espera aí, eu já te tinha feito umas meias bem quentinhas e grossas para te dar no Natal, dou-tas já.

No dia seguinte, o Carlos aparece na escola todo contente com as suas botas “novas”, mas o pior é que não conseguia correr nem jogar à bola na hora do recreio, acabando por se ir sentar no muro da escola e ainda ter de “aguentar” algumas piadas por andar com umas botas da tropa.

 

O Carlos ganha uns sapatos novos

A professora Ofélia que era muito exigente, mas bondosa em especial para com os bons alunos, tinha observado o que se estava a passar e, sem o Carlos saber, fez uma subscrição junto dos pais das crianças com mais “posses” e, no Natal, ofereceu-lhe uns sapatos que tinha ido comprar à vila. Foi com esses sapatos que Carlos foi fazer o exame da quarta classe, ficando registado como um dos melhores exames de que há memória naquela Escola.

 

Esta terceira história/crónica faz parte de uma série de outras histórias feitas de imaginação e memórias:

#1 – O Carteiro e o Retrato

#2 – O professor inesperado

 

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