“Contentamento” é um belíssimo texto de Vítor Encarnação que nos faz pensar sobre a nossa atitude perante e vida e o valor das “coisas” da vida.
Com toda a certeza que muitos dos nossos leitores se lembram das suas mães e/ou avós dizerem: “Guarda do riso para a chora“, “Guarda o que não presta, terás o que precisas“, “Mais vale guardar do que pedir“, ou outros ditados populares que incentivavam ao amealhar de coisas e dinheiro. Esta, era uma atitude enraizada na população portuguesa, numa época em que se atravessou um período de pobreza e se transmitiu na educação das gerações seguintes. Felizmente, hoje em dia, vemos muitos dos nossos jovens com um relacionamento com os bens materiais muito mais solto que lhes permite viver sem o peso, demasiado grande, das “coisas” que têm.
Uma Crónica ” Nada mais havendo a acrescentar” de Vitor Encarnação publicada no jornal Diário do Alentejo.
Contentamento
Troco o contentamento por coisas que tenho, cheguei à conclusão que não me fazem falta nenhuma, já nem sei onde as ponha, já nem me importa onde elas estejam, em mim é que já não cabem, eu estou cheia de desencanto, tudo aquilo que me parecia importante, tudo aquilo que luzia aos meus olhos, me parece agora tão pouco, tão sem sentido.
Andei uma vida inteira a juntar haveres e posses, a ser dona disto e daquilo, a ter para os outros verem, a acumular como os bons burgueses fazem, a guardar para dias difíceis, nunca se sabe, o dia de amanhã ainda ninguém o viu, privei-me de tanto gosto, pus de lado tanto prazer, soneguei tanta felicidade, tudo por causa das aparências e do futuro.
E agora aqui estou eu carregada de coisas, agora aqui estou eu com o dinheiro que não gastei, com o prazer ainda virgem, com a felicidade triste, as cómodas apinhadas de castiçais e bonecos de bronze, os jogos de cama guardados, as roupas por estrear, os faqueiros por abrir, os serviços por encetar, as toalhas que ninguém usou, os licores que ninguém bebeu, as toalhas de linho que nunca se sujaram de vinho tinto, as camas onde ninguém dormiu, os quintais imaculados onde nunca houve cães nem erva, os livros que nunca ninguém leu, as aparências que não me serviram de nada, o futuro que não encontrei.
Preciso de descansar da minha futilidade. Troco o contentamento por tudo o que tenho.
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