Esquecimento, um texto de Vítor Encarnação para nos fazer pensar sobre as limitações com que a idade nos presenteia. Quem tem o privilégio de caminhar na vida, avançando na idade, já passou, com toda a certeza, por episódios de esquecimento como nos fala Vítor Encarnação. No entanto, parece-nos avisado aceitar e aprender a viver com essas limitações, não perdendo nunca a esperança de um amanhecer raiado de um sol que se levanta no nosso coração e nos dá a força necessária para viver.
“Saio de onde estou para ir fazer uma coisa, uma coisa simples, nada de muito importante, algo de banal, estou dentro de casa, não há nada que enganar, fica tudo ao alcance de uns quantos passos, confio no automático mecanismo cerebral, vou e pronto, é rápido, é quase inconsciente, vou e já volto.”
Esquecimento
Saio de onde estou para ir fazer uma coisa, uma coisa simples, nada de muito importante, algo de banal, estou dentro de casa, não há nada que enganar, fica tudo ao alcance de uns quantos passos, confio no automático mecanismo cerebral, vou e pronto, é rápido, é quase inconsciente, vou e já volto. Saio de onde estou para ir fazer uma coisa e a meio esqueço-me, a meio não sei o que ia fazer, não faço ideia nenhuma, a meio abre-se um vazio dentro da cabeça, sei onde estou, sei que ia fazer qualquer coisa, uma pequena tarefa, buscar um objeto, ligar ou desligar uma luz, sei que estou dentro de casa, mas estranhamente não me sinto dentro de mim. Há uma cratera aberta entre aquilo que eu decidi há momentos e a forma de lá chegar. Há uma ponte partida entre duas margens. Há um pensamento a cegar de repente.
As pernas param algures entre o sítio de onde saí e o sítio para onde ia há segundos atrás, não sei se é no quarto, se na cozinha, se no quintal, olho em volta à procura de uma indicação, olho para as mãos, talvez elas tenham a resposta, se não forem elas nada mais me resta do que parar. E ali fico sozinho, especado, parado a meio entre um sítio e nenhures, nem para trás nem para a frente, à espera que o pensamento recupere desta cegueira.
Cada vez acontece mais, cada vez me esqueço mais do que ia fazer. Ao princípio ainda me ria, mas agora já não
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