A estiagem provocada pela falta de chuva, aumento das temperaturas e outros fatores, traz-nos à ideia as recentes notícias e imagens que mostram uma paisagem desoladora e as consequências para as populações locais e para o país devido à diminuição do caudal do rio Tejo. Porque a água é imprescindível à vida, partilhamos um texto de Vitor Encarnação que tão bem traduz em palavras o “grito” da terra seca e nos lembra a importância de não desistirmos porque: “Os pássaros e os homens sonham água”.
“A terra tem estado de boca aberta, planícies com gargantas fundas, gretas na alma dos montados, fissuras na esperança das searas, flores curvadas exclamando sede, torrões duros, congelados pelo calor, a minha pátria em brasa, incendiada de canícula, tudo à míngua de água.”
Estiagem
A terra tem estado de boca aberta, planícies com gargantas fundas, gretas na alma dos montados, fissuras na esperança das searas, flores curvadas exclamando sede, torrões duros, congelados pelo calor, a minha pátria em brasa, incendiada de canícula, tudo à míngua de água. O calor foi despindo as barragens, destapou-lhes a cabeça, os pés, os braços, depois as pernas, depois o peito, um pouco do ventre, já se vão notando os ossos. Os peixes vão recuando, recuando, até se refugiarem no coração das represas. Depois do coração já não há mais nenhum sítio para os peixes nadarem. As árvores são um silêncio seco a escorrer para o chão. As raízes são línguas mortas enterradas em pó e as ribeiras são veias vazias a transportar pedras paradas. Há um desespero a espremer o orvalho, há um desalento a atafegar a brandura que a noite inventa. Os pássaros e os homens sonham água, pois o que haverá de nascer nascerá da água, nascerá com a água. Os pássaros já foram ao céu, milhões de asas a caminho do céu, dentro do céu, atrás do céu, à procura de uma brecha no azul. Nada.
Mas os pássaros não desistiram, os pássaros voaram até ao grande lago e mergulharam e subiram até ao céu. Encostaram-se uns aos outros, milhões de asas penduradas no céu, e fizeram uma nuvem. Foi assim que choveu.
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