Histórias de Natal vividas na infância
“Só se lembra dos caminhos velhos
Quem tem saudades da terra”
Zeca Afonso
Quem não tem saudades dos tempos de infância, das histórias vividas que ficam marcadas na memória? Um tempo muito próprio com um ingénuo encanto!
Passados alguns anos, permanecem na minha memória histórias vividas com particular felicidade. Aceitei o desafio que o Hucilluc nos lançou através do facebook, aqui partilho uma história minha que, espero traga memórias felizes de tempos vividos em criança.
Uma história de Natal – Era uma vez uma família.
Era uma vez uma família que vivia numa aldeia do nosso país. Em casa viviam os nossos pais e os avós, a mãe e o pai da nossa mãe e nós as crianças eramos 3, dois rapazes e uma rapariga (eu a rapariga, a mais novita do grupo). Era habitual, alguns dias antes do Natal, numa tarde, munidos de um saco de sarapilheira ir pelo campo apanhar pinhas de pinheiros mansos. Para lá, o saco ia com fruta e bolachas e, ao final da tarde, regressava com umas 4 ou 6 pinhas que conseguíamos apanhar. Colocávamos as pinhas na lareira durante alguns dias para irem secando, até que uma noite depois de jantar, nos deixavam ficar até mais tarde e em volta da lareira todos se dedicavam a retirar os pinhões das pinhas colocadas junto ao lume vivo para abrirem. Os pinhões serviam mais tarde, para comer e para utilizar como moeda nos jogos do rapa e de cartas. Enquanto nos dedicávamos a esta tarefa, iam-se contando histórias que faziam as delícias da nossa imaginação fértil.
Entre muitas histórias, vou contar a que se referia a um animal misterioso, que era uma delícia para se comer, o cassapo, que gostava de pão com queijo e aparecia apenas nas noites muito frias e com muita neve como a aquela noite. Para se apanhar tinha que se deixar um saco aberto tendo no seu interior pão e queijo que atraiam o animal. Este aparecia pela madrugada aproximando-se das casas na busca de comida. Depois para o apanhar, tínhamos de estar bem atentos, quando o animal entrasse dentro do saco, atava-se rapidamente para que não escapasse. Havia apenas uma pessoa na aldeia que sabia como prepara-lo, era o Sr. Manuel, o dono da mercearia que havia na aldeia. O meu irmão mais velho que na altura devia ter uns 11 anos, logo se prontificou para ir com o pai colocar o saco preparado e ser o primeiro a acordar para fazer guarda e fechar o animal dentro do saco. Ficámos ansiosos pois também queríamos participar na apanha do cassapo, mas o pai disse que não podíamos ser muitos pois ele sentia-nos e não apareceria. Então, terminada a recolha dos pinhões, o pai e o meu irmão mais velho, colocaram um naco de pão com queijo num grande saco de serapilheira que foram montar aberto nas traseiras da casa. A noite foi de expectativa para todos. Lá fora a neve continuou a cair durante toda a noite, cobrindo tudo com um belo véu branco.
No silêncio da madrugada, um som de abrir e fechar da porta de entrada da casa, fez-nos acordar sobressaltados. Saímos a correr dos quartos, direitos à porta da rua onde já o pai nos esperava com o saco apertado com algo que estava dentro e era pesado. Disse-nos que já tinha apanhado o animal, mandou-nos ir lavar, vestir, calçar e tomar o pequeno-almoço que, depois podíamos ir à mercearia pedir ao senhor Manuel para preparar o animal. Que excitação! Queríamos ver o cassapo mas o pai não deixou porque ele podia fugir e podia morder-nos e as dentadas eram muito perigosas. Entretanto o pai saiu de casa e nós lá nos fomos preparar muito depressa mas, a mãe não nos deixou sair de casa sem comermos e sem estarmos bem agasalhados. Lá íamos os três, rua acima, muito eufóricos. O meu irmão mais velho ia à frente com o saco. Lembro-me que, quando cruzámos por outras pessoas, nos perguntaram onde íamos e o que levávamos no saco, quando respondemos, disseram-nos que tivéssemos cuidado para não o deixar fugir e soltaram um sorriso que só alguns anos depois percebi. Chegados à mercearia já o Sr. Manuel nos esperava. Explicámos ao que íamos e ele disse-nos que o nosso pai já o tinha avisado. Demos-lhe o saco e ele mandou-nos sentar num banco à espera. Desapareceu no interior da loja que dava acesso a casa e passado um bom bocado regressou com um animal dentro de um alguidar e colocou dentro do saco de serapilheira para ser mais fácil transportarmos. Chegámos a casa orgulhosos do nosso feito e excitadíssimos a dizer à mãe que já estava e que já podia cozinha-lo.
Nesse dia, comemos um coelho estufado que nos soube como nunca havia sabido, nem alguma vez mais nos veio a saber qualquer carne arranjada com o maior preceito.