“Já nada existe antes da primavera” – A propósito da primavera que se aproxima partilhamos uma Crónica de Vítor Encarnação, publicada no jornal Diário do Alentejo.
Fui à procura do inverno e não o encontrei.
Perguntei às pessoas se tinham visto o inverno e as pessoas disseram-me que não, que ainda bem que não o viram, que não faz cá falta nenhuma.
Já nada existe antes da primavera
Fui à procura do inverno e não o encontrei. Fui ver se encontrava lama, poças e lavajos, fui ver se encontrava correntezas, mas a água não corre, a água parada há de morrer às mãos do sol, o sol tem mãos que bebem a água aos poucos. Perguntei às pessoas se tinham visto o inverno e as pessoas disseram-me que não, que ainda bem que não o viram, que não faz cá falta nenhuma. E eu disse que elas estão enganadas, o inverno é o ventre da chuva, sem ele o sol bebe a água toda com as mãos, ainda não será primavera e já a terra terá afogado as ribeiras. Fui perguntar aos pardais pensando que eram pardais, afinal já eram andorinhas, a falta de inverno faz-me mal aos olhos e à cabeça, já não distingo pássaros, já não percebo o tempo. Perguntei às árvores se tinham sentido o vento e elas responderam-me que não, ele por aqui não passou, que tristeza tão grande não podermos dançar valsas de vento.
O que fazem já aqui ervas temporonas e flores imaturas? Que precocidade é esta que veste os campos de cores adiantadas? Se calhar foi por ser dia, se calhar foi por ir cego de azul que eu não encontrei o inverno.
Experimentei então ir de noite, fui à procura do frio, andei a ver se o encontrava deitado nas ervas, na respiração da minha boca, quis ficar com as mãos frias, quis ficar com geada nos ossos. Em vão. Já nada existe antes da primavera.
Texto de Vítor Encarnação, imagem da capa uma obra “Primavera” de Nuno Confraria
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