“… virão dias cortantes e virão noites em que na rua só haverá gatos com cio, encomendo lenha, melhor, encomendo uma emoção que arde.”
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Lenha
Dentro de todo o Alentejo que tenho dentro de mim, ou seja dentro do que sou, encontro uma das sensações mais simples e ao mesmo tempo mais profundas. Espero pelas formigas de asa, espero que elas me digam que é tempo, eu acredito nas formigas de asa porque sei que elas são a voz da chuva, sei que são o prenúncio do frio, o augúrio das geadas, até agora nunca falharam e já muitos outonos e invernos me passaram por cima. E por isso, por saber que virão dias cortantes e virão noites em que na rua só haverá gatos com cio, encomendo lenha, melhor, encomendo uma emoção que arde. Varro o alpendre, aprumo a telha, dou um aconchego nas paredes, faço uma casa para a lenha vir morar comigo. E quando a camioneta chega já tenho a casa pronta, os homens atiram a lenha para o chão, os tarolos e os madeiros trazem musgo agarrado à casca e bichos-de-conta nas saliências, arrumo-os, faço paredes de azinho, o azinho faz paredes tão bonitas, arrumo as enxapotas, escolho o madeiro para o Natal, será o maior, há-de arder noite e dia.
E depois quando o frio chega, às vezes ainda não há frio mas eu já não aguento a espera, acendo um fósforo e puxo fogo à minha emoção, primeiro a lenha miúda, depois a casca, depois a carne da lenha, depois os ossos da lenha, vou ardendo lentamente, faço-me em fumo, ergo-me em labaredas, renasço das cinzas.
Ponho as mãos no fogo e não me queimo.
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