Apresentação do livro “No Reino do Gerúndio” de Zé Carlos Albino, por Vitor Encarnação.
As redes, por meio das quais interagimos com o que nos rodeia ligaram-nos, embora virtualmente, a José Carlos Albino que já apresentamos aos nossos leitores em anteriores artigos.
Em resultado da apresentação do seu livro “No Reino do Gerúndio” realizada na Biblioteca de Beja, partilhamos as palavras de Vitor Encarnação sobre o autor e os seus escritos. Vitor Encarnação, licenciado em línguas e literaturas modernas, é professor do secundário, escritor com livros publicados e cronista semanal no Diário do Alentejo.
“não há medo sem coragem, não há luz sem sombra, não há vida sem morte, não há escrita sem sofrimento”
O Zé Carlos Albino é gente de muita gente.
Ele parte do Eu, é dentro de si que ele prepara as palavras para explicar a vida, é de lá que ele abala empunhando o significado da sua e das nossas existências. Numa espiral vocabular vai dizendo que não há medo sem coragem, não há luz sem sombra, não há vida sem morte, não há escrita sem sofrimento.
Quando somos convidados para apresentar um livro ficamos sempre com uma grande responsabilidade nas mãos e se for de poesia ainda pior. Fazer leituras de perceção daquilo que é o mais íntimo e mais profundo das pessoas é uma tarefa que implica muitos riscos, pois a tradução que fazemos das palavras pode nada ter a ver com o cerne da escrita e os objectivos do autor.
Conheço o Zé Carlos Albino há muitos anos, tinha eu acabado de voltar ao Alentejo em 1988 era ele o responsável pelas ESDIME – Agência para o Desenvolvimento Local no Alentejo Sudoeste. Encontrámo-nos algumas vezes, no âmbito da Esdime ou em debates nos quais ele sempre se mostrou um exímio comunicador, mas eu desconhecia-lhe esta verve para a escrita. Como ele próprio diz:
“Fui fazendo este tipo de escrita em papéis avulsos e toalhas de restaurantes desde os meus 25 anos, eles se foram perdendo, tendo apenas resistido o “Eu sou eu” e o “Sinais de Fogo”, porque vertidos em dedicatória a meu Pai, no ano de 1983.
O apelo para a escrita regular de escritos poéticos, terá uns 7 anos, para que muito contribuiu a minha tardia adesão à informática e Net e o abrandamento da minha vida profissional.
Mas, de certa forma, acho que eles poisavam na minha cabeça há décadas, pelo que foram sendo escritos em catadupa, aprimorando tanto quanto sou capaz de os redigir.”
Lembrei-me de um texto que escrevi há algum tempo e que penso que encaixa nesta tua perspetiva:
Escrever
Escrever é uma forma gramatical de explicar o confronto com a nossa existência. Quem escreve documenta sensações, derruba silêncios e acende a sua voz nos olhos dos outros.
As línguas fizeram muitas palavras para que assim não nos perdêssemos. E quando parece que nos vamos perder, quando parece que já não há palavras que nos consigam significar, eis que, na imensa quantidade dos vocábulos, encontramos aqueles que nos permitem dizer na plenitude.
As palavras são como peças desordenadas de um puzzle inquieto que se carrega dentro do peito. São ideias confusas, coisas partidas, verbos que só por si não servem para nada, sujeitos solitários, adjetivos inqualificáveis, predicados que não se afirmam de sujeito nenhum.
E o escritor pega nesse puzzle desordenado e compõe a vida. Compõe-na como se tocasse uma música sem som. Palavra após palavra. Incansáveis formigas de tinta em linha reta, de parágrafo em parágrafo, à procura de um ponto final que as descanse. Palavras ligadas umas às outras pela fome de querer dizer, um carreiro de palavras carregando significados em cima do lombo da sua própria fragilidade.
Escrever é uma rede de palavras urdida pelos escritores para apanhar a vida e não a deixar fugir por entre os buracos do tempo.
A terra e a lua
O Zé Carlos Albino é um homem de raízes, sabe que o fruto provém da terra, sabe que cada homem e cada mulher é o resultado do que foi de facto, mas também dos seus sonhos. O racional e o emocional de mão dada.
Quantas vezes o poeta não os sabe distinguir.
Tu és fruto da terra do Alentejo, esse Alentejo ali para os lados de Messejana, que também te realizou o sonho de escreveres um livro. E por isso quiseste este título, quiseste que o gerúndio estivesse presente, não há verbo mais inquieto do que o gerúndio, e a poesia quer-se inquieta, viva, mas ao mesmo tempo dolente, ao mesmo tempo melancólica.
A lua. Anteontem quando vi aquela lua grande lembrei-me de ti e pensei: O Zé Carlos deve estar a escrever sobre esta lua.
Hoje, a gorda, dentro de si, fez-se encantando marés de esperanças.
Este Reino do Gerúndio está dividido 4 capítulos.
O 1º capítulo: MISTÉRIOS, NATUREZA E VIDAS
Estes 3 temas cruzam-se porque são, a poesia permite-me dizer isto, 3 faces da mesma moeda. E cada homem e cada mulher nasce, vive e morre envolto em mistério, carregado de perguntas e dúvidas, perguntas e dúvidas essas a que só a escrita dá resposta. O poeta resolve-se através da escrita, faz uma catarse para se entender e quando o poema acaba a pergunta e a dúvida mantiveram-se mas o poeta sente-se um pouquinho melhor.
O 2º capítulo: EXISTÊNCIAS CONTRADITÓRIAS
É aqui que dizes esta coisa bela e terrível ao mesmo tempo:
Nas entranhas de nós
nas pegadas dos pássaros que nos rasam
o ser por ser
nos peixes sem água
desertificamo-nos
É aqui que dás voz ao anjo sem guarda, às veias enleadas, à corda bamba, à tristeza com asas, ao vazio, aos erros.
Para os poetas a vida é uma contradição, querem alcançar a felicidade e afastar a tristeza, mas sabem que há quase sempre mais beleza na tristeza do que na felicidade. É como o vinagre que tempera a carne mais suculenta. A felicidade só é boa se antes estiver longamente a marinar em tristeza.
O 3º capítulo: EU E OS OUTROS
A velha dicotomia entre a minha existência e a dos outros. Os pontos de contacto e os de discórdia, as relações, a família, os pais, a mãe, os amigos, é aqui que pões os pontos nos iis, é aqui que estás e és, é aqui que queres ser imortal, e que melhor e única forma de ser imortal do que a escrita.
Quem diz: Escrevo para não morrer, já
é um poeta. Só os poetas acreditam na escrita como forma de redenção. Só os poetas acreditam na salvação através da poesia, a poesia é um a religião politeísta, as palavras são os seus deuses e com elas há redenção:
dizes tu que:
Há veredas que nos levam a buracos, há procuras sem fim, há vontades frustrantes mas no devir saltaremos.
O 4º capítulo: O TEMPO E A VIDA
O tempo, esse grande construtor e destruidor de vidas, esse ditador implacável do corpo, esse coração a bater que só anda para a frente, quer nós queiramos ou não. Se não nos dermos conta, o malandro do tempo faz de nós um fósforo, palha miúda, uma centelha que é já cinza quando cai, uma bicha-de-rabear que se apaga depois de dar duas ou três voltas caprichosas no largo da nossa vida.
Dizes tu que :
a vida é um fio
fio que logo se enleia com outros fios de outros novelos
tudo tem um começo e um fecho
o tempo é feito por dentro de nós
a incessante descoberta de irmos sendo
caminhamos por veredas
nasce-se para viver de gatas ganhando-se olhos de ver ao longe.
Mas o tempo não te fez esquecer as mães, a tua mãe. As mães são raízes profundas, são memórias perante as quais o tempo nada pode fazer.
Perante a ternura, a austeridade do tempo nada pode fazer.
Abraçado ao amor como redenção, vais neste livro conjugando o gerúndio da poesia e é por isso que acabas dizendo
Está acabando…
Mas não pões lá nenhum ponto final porque tu sabes que o gerúndio é um reino que não acaba.
Muito obrigado por este livro. Um abraço.
Vitor Encarnação
Biblioteca de Beja, 22 de Janeiro de 2019.
Nota Biográfica de Vítor Encarnação
Vítor Encarnação nasceu em 1965 na Aldeia de Palheiros, concelho de Ourique.
Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas pela Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa, é professor de Inglês no Agrupamento de Escolas de Ourique.
É Presidente da Assembleia Geral da Associação de Escritores do Alentejo – ASSESTA.
Cronista permanente nos jornais Diário do Alentejo e Correio Alentejo, publicou as seguintes obras: Tricotar o Tempo (poesia, 1997) – Edição de Autor; Coisas de Muros e de Asas (poesia, 1999) – Edição de Autor; À Espera das Andorinhas (crónicas, 2005) – Edição de Autor; O Passado é um Arquivo Morto (crónicas, 2006) – Edição de Autor; Marcado a Cal (contos, 2008)– Edição 100Luz; Maturação (poesia, 2008) – Edição 100Luz; O Lagarto Leão e Outras Histórias Pintadas à Mão (livro infantil, 2009) – Edição 100Luz; Maçã de Adão (poesia, 2010) – Edição 100Luz; Fio de Ariadne (crónicas, 2011) – Edição 100Luz; Suão (conto, 2012, ilustrações de Joaquim Rosa- Prémio Casa do Alentejo) Edição 100Luz; O Porquinho Malaquias – A história de um porquinho alentejano (livro infantil, 2013) Edição Junta de Freguesia de Ourique; SUS (poesia, 2013, ilustrações de Joaquim Rosa) – Edição Câmara Municipal de Ourique; Nada mais havendo a acrescentar (crónicas, 2015, ilustrações de Susa Monteiro) Edição Calendário de Letras; Nada mais havendo a acrescentar – livro 2 (crónicas, 2017, ilustrações de Joaquim Rosa) Edição Narrativa.
Participou também nas publicações: Nova Antologia de Poetas Alentejanos (poesia, obra colectiva, 2012) Edições Colibri; Este futebol que nós amamos (crónicas, obra colectiva, 2013) – Edição de autores; Contos do Caneco (contos, obra colectiva, 2013) – Edição Associação Admira; Stories do Alentejo (contos, obra colectiva, 2013) – Edição O Lugar da Palavra; Os Nomes das Ruas – Toponímia da vila de Ourique (Texto documental, 2014, em parceria com Henrique Figueira e Valter Bento) – Edição Associação Orik; 27 acrobacias – igualdade de género contada e ilustrada (poesia e contos, obra colectiva, 2014) – Edição Esdime; Contos ASSESTA Alentejo (contos, obra colectiva, 2017) – Edição Associação ASSESTA.
Vai publicar no próximo mês de Abril: Nada mais havendo a acrescentar – livro 3.
Como o Autor “escrutinado e apresentado”, via o “No Reino do Gerúndio”, tenho que dizer que o Vitor é brilhante, talvez lendo a mais do sou e escrevo, abriu-me os olhos para novas coisas que escrevi, sendo que assim ME ENRIQUECI “.
Obrigado Vitor !!
Obrigado Meninas do “Aqui e Ali”, pelo excelente trabalho de apresentação !!
zé carlos albino,
Messejana 11 de Fev. . 2019.
Obrigada aos dois. Iremos continuar o contacto e a partilha para um crescimento/enriquecimento conjunto
A equipa do blogue