“Gosto de podar, um toque aqui, outro ali, faço de conta que sou um cabeleireiro de árvores e arbustos e encho uma saca de cabelos vegetais.Depois vou para o alegrete, passo da hortelã para o alecrim, dos poejos para os limões, da salsa para os coentros, ando de joelhos no chão, o nariz a recolher os aromas e a mandá-los para o cérebro, a limpar o cérebro do mofo dos papéis.”
Quintal
A minha rotina é feita de papéis, debaixo do braço, dentro de malas, em cima de secretárias. Desde que me lembro há folhas e livros a preencherem-me os dias. Há na relação com o papel um vício que raramente é quebrado e que toma conta do meu sistema nervoso. Quando pressinto que já não vejo mais nada para além de capas e letras e páginas, quando as atas e os relatórios me começam a torturar, quando o pensamento nebuloso inaugura um estado de ansiedade dentro de mim, é tempo de parar, é tempo de ir fazer coisas com as mãos. Vou para o quintal, pego num sacho, arranco as ervas daninhas e liberto as flores. Gosto de libertar flores e de lhes dar água, dar água às flores liberta-me. Gosto de podar, um toque aqui, outro ali, faço de conta que sou um cabeleireiro de árvores e arbustos e encho uma saca de cabelos vegetais. Depois vou para o alegrete, passo da hortelã para o alecrim, dos poejos para os limões, da salsa para os coentros, ando de joelhos no chão, o nariz a recolher os aromas e a mandá-los para o cérebro, a limpar o cérebro do mofo dos papéis. Depois enterro os dedos na terra, preciso de ter terra debaixo das unhas, as mãos sujas, o suor a escorrer cara abaixo enquanto cavo fundo, enquanto aliso a terra. Depois bebo água fresca e como uma bucha a meio da manhã. O rádio está sempre ligado e eu vou trauteando canções. Quando as pessoas trauteiam canções é porque estão felizes.
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