Vinho, porque conforme nos diz Vítor Encarnação:
“A solidão gosta de vinho. O convívio também gosta de vinho. “
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Vinho
As raízes do vinhedo agarram-se à nossa alma de xisto, granito e calcário e do nada, da poda, do ventre de um esqueleto castanho nascem folhas que se vão, lambidas pelo sol, inebriando de verde. E depois, lentamente, as uvas irrompem, iluminam-se e ganham forma de mulheres redondas. São mulheres tintas e mulheres brancas aos cachos enfeitando a planura.
Para as uvas ficarem mais doces, um silêncio de açúcar percorre a vinha toda.
E da secura dos torrões e do azul do céu aparecem bichos e pássaros à procura de um qualquer bago maduro.
Os homens querem que o Verão se despache. Querem que a insolação termine e a vindima chegue, querem que o imemorial ritual comece e que as uvas atinjam a maturação e derramem por fim a sua essência, pois o vinho é o sangue da terra a correr nas veias dos homens.
Quem faz vinho é um alquimista de sentidos. Quem faz vinho liquidifica o prazer. Dentro de um copo está o Alentejo todo: a história das gentes, a identidade de uma região, as tabernas, o sol teimoso, a lonjura, montados, cortiça, botas cardadas, noites perdidas, modas, restolho, cal.
O vinho tem palavras frutadas dentro dele. São adjectivos superlativos de superioridade, são verbos de tentação, substantivos brancos, exclamações tintas. O vinho é um diálogo entre um homem e a sua raiz.
Quem nunca pisou uma vinha e nunca entrou numa adega está incompleto. Falta-lhe ir a montante da seiva, perceber a complexidade, deixar entranhar o perfume, absorver o percurso todo.
Uma garrafa de vinho tem corpo de mulher. Observar a forma, passar os dedos pelo vidro, recitar o rótulo, sacar a rolha, encher o copo, são os preliminares de um absoluto contentamento gustativo.
O vinho é canções, poemas, desamores, sinfonias, sangue de Cristo. Cultura. Concílio dos Deuses. Arca de Noé. Fenícios. Gregos. Coisa da Odisseia. Paixão dos Romanos. Legionários. Gastronomia. Artistas. Baco.
A solidão gosta de vinho. O convívio também gosta de vinho. A carne gosta mais de vinho tinto, talvez Periquita, quem sabe Trincadeira ou Aragonez. O peixe gosta mais de vinho branco, quiçá Antão Vaz, Roupeiro ou Rabo de Ovelha.
O vinho gosta de queijo de Serpa, de casqueiro, cabeças de borrego, jantares de grão, migas, linguiça assada e sopas de tomate. Às vezes, o vinho é servido em copos grossos, encosta-se aos balcões e canta a despique, faz quadras, discute o destino. Outras vezes, deitado em copos de pé alto, o vinho é mais intelectual, lê livros, discute filosofia. Mas em ambos os casos é capaz de falar noites inteiras porque as bocas estão felizes.
Um jantar sem vinho é um jantar oco, uma mesa despida, um monólogo de dentes.
O vinho é coisa principal, pois ele é um rio a correr alegremente entre as margens de uma açorda de coentros.
Texto de Vítor Encarnação, imagens de Obras da Artista Plástica Cláudia Ferro
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