Ana Cláudia Cohen, diretora do Agrupamento de Escolas de Alcanena, lidera um projeto disruptivo na área do ensino, tendo como objetivo levar os alunos a empenharem-se na aprendizagem. O projeto de flexibilização escolar, com um “Laboratório de Criatividade”, levou a que o Agrupamento de Escolas de Alcanena tenha sido eleito como o melhor da Europa entre 1100 escolas de 15 países no ensino das ciências, uma distinção do STEM School Label.
Nestes dias em que tanto se tem discutido a atual forma de ensino em Portugal questionado se devem os alunos do ensino básico chumbar ou não, partilhamos esta entrevista a Ana Cláudia Cohen que nos fala de um projeto ímpar na área do ensino.
Ana Cláudia Cohen, fala-nos um pouco de si, do seu percurso de vida que a levou a dedicar-se, de corpo e alma, ao ensino.
A minha vida tem estado, de alguma forma, sempre ligada à educação. Sou filha de pais professores. Aos 3 anos, dizia que queria ser professora e apesar de ao longo dos tempos a minha mãe me ter tentado dissuadir, aos 17 fiz a minha opção de sempre. Após o estágio profissional na Escola Secundária Pedro Nunes, fixei-me em Alcanena, onde continuo há quase 30 anos.
Sem falsas modéstias, nunca fui uma professora normal. Pensei sempre fora da caixa, no sentido de levar os meus alunos a aprender de forma eficaz.
Após o primeiro ano em Alcanena, fui orientadora de estágio pela Universidade Nova. Fiz de tudo um pouco na Escola. Passei por todos os cargos, diretora de turma, delegada de grupo, professora bibliotecária, presidente da Assembleia de Escola, presidente do Conselho Geral, subdiretora e agora diretora há 5 anos.
Em todos eles, deixei a minha marca, pois acho que não é o lugar que faz as pessoas, mas as pessoas que fazem o lugar e isso para mim sempre foi relativamente simples, uma vez que me motivo com facilidade. Acredito profundamente no poder da educação transformadora, e é com entusiasmo que tento envolver e motivar os outros para esta nobre causa, que não é mais do que a minha missão.
Sabemos que os jovens têm em si um mundo de inquieta esperança, que lhes dá uma rebeldia muito própria. Como se motivam os jovens para uma aprendizagem na área das ciências?
Ainda que esta tarefa seja dos professores e não minha, penso que nunca foi tão fácil. Por um lado, a própria sociedade impele os alunos a opinar, a intervir, por outro, as aulas de ciências experimentais são uma realidade, na maioria das escolas. Acresce que, neste quadro legal da flexibilidade curricular, o desenvolvimento de projetos interdisciplinares e a possibilidade de integrar o currículo local facilitam todo o processo. Por outras palavras, abriu-se portas para a democratização das ciências na escola, anteriormente muitas vezes trabalhada (parte experimental) nos clubes e por consequência apenas com aqueles que se inscreviam nessas atividades extracurriculares.
Que estratégias utilizam para envolver os que têm apetências para outras áreas que não as da ciência?
O AE de Alcanena tem um plano vertical das ciências experimentais concebido bottom-up, isto é pelos educadores e professores de ciências e que cobre desde o pré escolar aos alunos do 12º ano.
Desde há 3 anos, com a flexibilidade, esse plano passou a integrar outras disciplinas e acabou por assumir contornos de um plano vertical interdisciplinar. Deste modo, as crianças que entram neste agrupamento aos 3 anos são, desde cedo, confrontados com situações que suscitam a curiosidade, com a análise de fenómenos, com a experimentação, com a tecnologia e com outros espaços fora das 4 paredes da sala de aula onde se aprende ciência brincando.
No primeiro ciclo, os alunos começam já a aplicar a via investigativa, implicando a manipulação de variáveis, a partir de projetos que desenvolvem no âmbito da integração do currículo local, têm programação e robótica e, tal como no pré escolar, muitos dos projetos são desenvolvidos em parceria com o Centro de Ciência Viva do Alviela e Quinta do Arrife.
A partir do 2º ciclo, as STEM são alargadas às STEAM, pois pensamos que na transição da monodocência para a pluridocência, na mudança de escola e de ciclo, as artes têm um papel fundamental na desocultação das suas capacidades por parte do aluno, assim como na auto-descoberta. Por isso pensamos que aliar as artes às ciências e tecnologias é fundamental nesta faixa etária. Fazemo-la de três formas, ao nível do currículo que é trabalhado em interdisciplinaridade; ao nível da própria matriz curricular, com a criação de novas disciplinas, Cri@rte e ciência ativa; ao nível das parcerias, nomeadamente com a Associação Materiais Diversos, sendo que acolhemos três residências artísticas, nas quais as artistas trabalharam ao longo do ano a voz, o movimento, filosofia e as artes plásticas em interseção com as aprendizagens essenciais, fomentando a relação com o meio local.
A partir do 3º ciclo, os projetos no âmbito das STEM têm cada vez maior visibilidade, contando como parceiros os Institutos Politécnicos de Leiria e Tomar e a Universidade de Aveiro. O expoente máximo no desenvolvimento de projetos investigativos é no secundário, nas turmas de ciências e tecnologias, que têm elegido como parceiros a FCT da Universidade Nova, a Universidade de Coimbra e Universidade da Beira Interior.
Ana Cláudia Cohen, na sua opinião há que alterar, de forma significativa, o tradicional modo de ensino a todos os níveis, adaptando-o a um mundo global, em que a tecnologia em contante crescimento e disseminação faz parte do dia a dia de todos?
Obviamente que sim, a escola mudou nos últimos 4 anos, os alunos são outros, o enquadramento legal mudou, o currículo é outro (aprendizagens essenciais), as práticas de sala de aula são outras, a forma como os professores se relacionam entre si também é outra. Todas estas transformações concorrem para o desenvolvimento das competências do séc. XXI. Desta forma, são os alunos que escolhem os projetos a desenvolver, que definem os objetivos e todos os passos da via investigativa, que formulam hipóteses, que pesquisam, interpretam e analisam os dados obtidos, que os demonstram e comunicam à comunidade e em diversas situações formais, congressos, seminários, festivais das STEM ou outros. São eles que estabelecem as parcerias com as universidades, centros tecnológicos ou tecido empresarial, numa tentativa de ver validade a hipótese que formularam para um problema que é real, na sua grande maioria da sua comunidade ao qual querem dar uma resposta, no sentido de fazerem parte da solução e contribuírem para o desenvolvimento sustentável da comunidade onde estão integrados. Nestes projetos, a comunicação, a criatividade, o espírito crítico, a colaboração e o pensamento computacional estão sempre presentes, a par da mobilização da tecnologia.
Através da comunicação social tomamos conhecimento que o agrupamento de escolas de Alcanena recebeu o selo de qualidade do Proficient STEM School Label. Pode explicar o que é O STEM e como é atribuído esse selo?
O STEM School Label é um projeto desenvolvido pela rede European Schoolnet, constituída em 1997 e que congrega, atualmente, 34 Ministérios de Educação europeus, entre outras entidades. Com financiamento proveniente da União Europeia, o referido projeto foi lançado em 2017 e pretende distinguir as escolas aderentes à educação STEM, que promove as competências nas áreas das Ciências, das Tecnologias, das Engenharias e das Matemáticas.
Desde 2016 que o Agrupamento de Escolas de Alcanena vem trilhando um caminho de inovação e de promoção destas áreas curriculares, com a implementação de recursos educativos como a “Sala do Futuro”, a “Aula sobre Rodas” e o “Laboratório da Criatividade”, potenciados pela recente adesão ao projeto da Flexibilidade Curricular.
O objetivo essencial de toda esta dinâmica pedagógica fundamenta-se no novo perfil do aluno do século XXI e nos difíceis desafios que lhe são colocados pelo contexto multifacetado da sociedade em que está inserido e na qual tem o direito de ser incluído e de nela ter um papel ativo.
Mais do que absorver conhecimentos, a todos os alunos devem ser facultadas as ferramentas necessárias para que eles próprios tenham acesso a eles, através do desenvolvimento de projetos, concebidos para a resolução de problemas do meio envolvente, estimulados pelo pensamento crítico e criativo, pelo diálogo interdisciplinar, fora de uma sala de aula fechada e com horários rígidos.
Desde o nível pré-escolar ao secundário, todos têm sido chamados a este processo de adaptação: uma mais exigente liderança, uma nova cultura escolar, metodologias de aprendizagem baseadas mais na ação e iniciativa dos alunos, avaliação contínua e formativa, estabelecimento de parcerias e infraestruturas adequadas.
Uma das evidências mais reveladoras desta nova abordagem é o envolvimento de variados parceiros no desenvolvimento dos projetos, através da disponibilização dos seus próprios recursos humanos e tecnológicos, dos seus espaços e funcionalidades. Empresas locais, Centro de Ciência Viva do Alviela, Centro Tecnológico da Indústria dos Curtumes, Politécnicos e Universidades são alguns dos exemplos desses parceiros, os quais, pela sua importância e excelência, justificam o nível já atingido e potenciam expetativas ainda mais elevadas.
Alguns dos projetos em desenvolvimento podem mesmo vir a ter um impacto importante em ordem à minimização ou resolução de problemas relacionados com as atividades económicas locais.
Foram todas estas boas práticas que proporcionaram a atribuição da distinção, já referida, ao Agrupamento de Escolas de Alcanena, a partir de um processo de autoavaliação envolvendo 21 critérios específicos.
De um universo de 1100 escolas candidatas, 300 escolas de 15 países alcançaram o Selo de Competência no ensino das ciências, sendo 5 delas também de Portugal: Agrupamento de Escolas Cidade do Entroncamento, Escola Secundária de Loulé, Escola Profissional de Oliveira do Hospital Tábua e Arganil, Agrupamento de Escola de Odemira – Escola Secundária de Odemira e Escola Profissional de Almada.
Apenas ao Agrupamento de Escolas de Alcanena, de entre todas as escolas candidatas, foi concedido o Selo de Proficiência, o segundo patamar de certificação STEM. É de registar ainda que o Agrupamento de Escolas de Alcanena foi também selecionado como Escola Embaixadora STEM.
Quando e como começou o interesse, dos professores e alunos, pela área da investigação científica, ainda antes ou após a adesão ao STEM, qual a motivação que os move?
A adesão às STEM têm grande tradição no AE de Alcanena, ainda que, tal como referi anteriormente, outrora muitos dos projetos eram desenvolvidos em clubes, ao contrário do que acontece hoje, que são todos curriculares. Obviamente que esta certificação foi um reconhecimento público que muito nos orgulha e impulsiona a continuar a trilhar este caminho.
Para conseguirem esta distinção, é necessária toda uma equipa com um envolvimento muito comprometido com a escola, com o ensino e com os alunos enquanto aprendizes e enquanto seres humanos. Como é que Ana Cláudia Cohen, como diretora do agrupamento de escolas, consegue criar uma equipa destas?
Os professores do AE de Alcanena são excelentes e muito comprometidos com a missão do agrupamento. Costumo dizer que a minha tarefa é a mais fácil: entusiasmar, envolver, motivar, fazer acreditar. Os alunos, por outro lado, empenham-se no desenvolvimento dos projetos e isso é uma grande motivação para os professores, pois verificam no dia a dia que as aprendizagens adquiridas pelos alunos são eficazes e isso empele-os a fazer mais. Por outro lado, nós somos uma grande equipa e o trabalho colaborativo está muito enraizado a diversos níveis, o que é facilitador deste processo. No AE de Alcanena, a mudança não se faz por decreto, mas porque faz sentido, e é necessária. Essa necessidade de levar os alunos a aprendizagens eficazes é o grande motor desta grande equipa. Depois o envolvimento dos alunos, da comunidade, o orgulho coletivo, o encontrar soluções faz o resto.
Da minha parte, enquanto diretora, faço questão de reconhecer individualmente o trabalho dos docentes e dos parceiros e por isso, não é invulgar iniciar o ano letivo com a entrega de medalhas ou troféus aos nossos docentes.
Vamos ouvindo nos meios de comunicação as dificuldades de colocação dos professores. Ana Cláudia Cohen, como consegue ter uma equipa de professores com estabilidade e continuidade de trabalho?
Sim, cerca de 90% dos docentes do AE de Alcanena são do quadro e temos tido muita sorte com os professores contratados, porquanto se deixam facilmente contagiar por esta energia e engrandecem a nossa família.
Ana Cláudia Cohen, como é que os pais, encarregados de educação e a população local, reage a esta forma inovadora de ensino? são participantes ativos?
Sim, os pais, como é natural, são muito orgulhosos dos feitos dos seus filhos.
Qual é o pai que ouve o seu filho de 3 anos explicar fenómenos complexos como a atração dos corpos, luz e movimento de forma simples que não fica orgulhoso? Qual é o pai que ouve o filho de 14 anos falar sobre problemas ambientais ou outros com propriedade e sobre as soluções para o mesmo que fica indiferente? Qual é o pai que vê os contactos do seu filho com professores de física de FCT da Nova, com a NASA, ou Estação Espacial e acha que o seu filho não está a aprender? Nenhum. E essa postura dos pais é facilitadora, porque confiam e têm orgulho no AE de Alcanena. Os pais colaboram com o AE de Alcanena e isso tem consequências, quer ao nível do desempenho das crianças e alunos, quer ao nível do aumento do número de alunos.
Os projetos de investigação que Ana Cláudia Cohen tem prosseguido, visam responder a problemas locais na ótica da sustentabilidade e da biodiversidade. Pode dar um exemplo de um projeto elaborado pelos alunos, de que modo o produzem e como o sustentam?
Os projetos desenvolvidos têm suporte nas aprendizagens essenciais das áreas disciplinares e trabalham, frequentemente, o currículo local. Neste âmbito, temos desenvolvido várias investigações relacionadas com problemas reais da sustentabilidade, que suscitam o interesse dos alunos. Por exemplo, no último ano letivo, alunos do 6º ano desenvolveram experimentalmente uma investigação para testar a eficácia de um inseticida natural à base de óleo de lavanda no tratamento da praga da varroa, um ácaro que afeta inúmeras colmeias de abelhas produtoras de mel. Os alunos aprofundaram conhecimento sobre o assunto e elaboraram um projeto com variáveis experimentais; produziram concentrações diferentes da mistura de óleo de lavanda, estruturam os procedimentos com o devido controlo experimental e, com a colaboração de um apicultor, foram ao campo, vestiram os fatos protetores e colocaram, em diferentes colmeias, as concentrações pré-determinadas do óleo de lavanda. Os resultados da aplicação do óleo de lavanda como inseticida foram obtidos também in loco, no apiário.
Em níveis mais elevados, no ensino secundário, os projetos investigativos têm sempre a colaboração e acompanhamento de um centro de investigação especializado.
Neste ciclo de ensino, o processo implica mais dos alunos. São eles que propõem, debatem e escolhem os projetos de investigação a desenvolver. São os alunos que estabelecem contactos para as parcerias, essenciais para a investigação, porque validam cientificamente o processo e permitem explorar outros recursos para experimentação das variáveis em estudo.
Neste âmbito, temos inúmeros exemplos de projetos de investigação ligados a problemas locais, desenvolvidos sempre para perspetivar “novas soluções” para “problemas antigos”. Os alunos desenvolvem as diferentes etapas de investigação e, paralelamente, apresentam o seu trabalho em congressos, concursos e, não raras as vezes, publicam ensaios e artigos científicos. Os exemplos destes projetos são variados e muitos estão ligados aos problemas da sustentabilidade ambiental das indústrias das peles, propondo experimentalmente novas formas de produção e novos produtos como o EucalypGrape Leather, a gestão mais eficaz de resíduos numa lógica de economia circular, como a BioBattery ou a mitigação de poluentes ambientais, como o GreenFilter ou o Happy2Smell. Este último foi desenvolvido por alunos do 12º ano de Química e está na ordem do dia, pois criou experimentalmente um filtro eficaz na retenção bioquímica do sulfureto de hidrogénio, um poluente atmosférico que está na base dos maus cheiros sentido em Alcanena. Este filtro pretende contribuir para uma solução ambientalmente eficaz, pois permite, através da inoculação de bactérias sulfurosas, extraídas das lamas de tratamento de ETAR, na matriz da planta Luffa aegyptiaca, que estas metabolizem o sulfureto de hidrogénio, reduzindo assim a sua libertação atmosférica.
Tendo o agrupamento uma cultura tecnológica e científica tão enraizada no âmbito escolar que tipo de parcerias tem estabelecidas?
No pré-escolar, no âmbito das ciências e tecnologia – Centro de Ciência Viva do Alviela, através do desenvolvimento do projeto Ciência XXS; no âmbito das ciências e biodiversidade com a Quinta do Arrife, nomeadamente o projeto Arrife Vivo. No 1º ciclo, Escola Ciência Viva, no âmbito de uma parceria com o Centro de Ciência Viva e coadjuvação dos professores de TIC do AE no âmbito da Programação e Robótica. No 2º Ciclo – parceria com o Centro de Ciência Viva e a Associação Materiais Diversos. No 3º ciclo – Institutos Politécnicos da região e Universidade de Aveiro; Centro de Ciência Viva. No secundário – FCT de diversas Universidades do país; Centro Tecnológico da Indústria do Couro. Paralelamente somos escola embaixadora das STEM e pertencemos também à rede de escolas com Future Classroom Labs da European School Network desde 2016, decorrente da inauguração da nossa Sala de Aula do Futuro nesse ano.
Divulgam pela comunidade escolar e científica a realização destes projetos no âmbito STEM?
Sim, os projetos são divulgados no final do ano, no evento para toda a comunidade, a par da divulgação junto da comunidade científica, através da participação dos nossos alunos em congressos, seminários e projetos de âmbito nacional e internacional, e claro através da produção de artigos científicos sobre os mesmos.
Depois da distinção obtida, no âmbito do projeto STEM, o que esperam vir a alcançar no futuro?
Mais proficiência e a obtenção do grau superior, de Expert STEM School Label.
Ana Cláudia Cohen, diretora do Agrupamento de Escolas de Alcanena
Um comentário em “À conversa com Ana Cláudia Cohen, diretora do Agrupamento de Escolas de Alcanena”