O Artista Plástico Jorge Romão
Jorge Romão, licenciado em filosofia, é um homem muito ligado à natureza, à terra e ao que ela nos proporciona. Foi no campo que passou a sua infância e em resultado dessas vivências e desse seu gosto pela natureza, Jorge Romão encontra aí inspiração para muitas das suas obras. Em todas elas, ressalta um fogo interior que habita o artista, muito provavelmente alimentado pelas memórias da terra onde nasceu. Em resultado da sua criatividade surgem obras espantosas, inesperadas que chegam a deixar perplexo o próprio autor.
“… quando se nasce numa aldeia, o barro e os cheiros da terra entranham-se na pele, modelam os primeiros passos e deixam marcas indeléveis no temperamento.
A vida pode tirar-nos tudo: as pessoas que amamos, as conquistas que fizemos ou os sonhos que nunca concretizámos. Só não nos tira o lugar onde nascemos.”
Sendo um dos nossos lemas “podemos crescer partilhando” e a arte um dos temas através do qual queremos crescer em conjunto com os artistas que admiramos, aqui fica uma entrevista escrita de Jorge Romão.
Jorge fale-nos um pouco de si e do seu percurso de vida que o levou a ser um profissional na área da intervenção social, na esfera da Justiça.
Ao contrário da maioria das pessoas, nunca planeei o meu percurso, quer pessoal quer profissional. Que me recorde, nunca afirmei que, quando fosse grande, queria ser isto ou aquilo. Limitei-me sempre a aproveitar as oportunidades que a vida me ia proporcionando, trilhando os caminhos que se me iam oferecendo, ou que me eram impostos, como foi o caso do cumprimento do serviço militar obrigatório, que me fez assentar praça em Lisboa.
Anos mais tarde, concorri a vários concursos de admissão na Administração Pública. Se não estou em erro, cheguei a estar em 20 concursos em simultâneo. Depois de ter ingressado com a categoria de escriturário-dactilógrafo nos quadros de pessoal civil da Força Aérea, concorri a um concurso para administrativo no então Instituto de Reinserção Social. Pouco tempo depois, retomei os estudos e conclui o curso de filosofia como trabalhador estudante. Mais tarde, ingressei na carreira de técnico superior de reinserção social, desenvolvendo desde então funções na área da intervenção social na esfera da Justiça.
Que memórias mais marcantes tem da sua infância e juventude?
Tenho alguma dificuldade em isolar quais as memórias mais marcantes dessa fase da minha vida. São tantas e tão intensas, que deram origem ao livro que publiquei em 2016 “Quando os ciprestes davam laranjas – memórias do Painho”.
De qualquer modo, destacaria a memória mais antiga que preservo: o internamento durante 9 meses no hospital Dona Estefânia, quando tinha pouco mais de dois anos de vida. Desse episódio resultou que viesse a ter três mães: tal como “as pombinhas da Catrina, que andam de mão em mão”, eu andava de mãe em mãe. Na altura, tinha mais facilidade em distinguir os naipes das cartas do que as mães. Para saberem os motivos vão ter que ler o livro. (lol)
As restantes memórias estão inevitavelmente ligadas aos Painho, a aldeia onde nasci e aprendi a gatinhar. O lugar onde nascemos não se esgota na anotação que consta da certidão de nascimento. E quando se nasce numa aldeia, o barro e os cheiros da terra entranham-se na pele, modelam os primeiros passos e deixam marcas indeléveis no temperamento. A vida pode tirar-nos tudo: as pessoas que amamos, as conquistas que fizemos ou os sonhos que nunca concretizámos. Só não nos tira o lugar onde nascemos.
Apesar de viver em Lisboa há cerca de 40 anos continuo, modelado pelas memórias de infância, a preferir pisar os tapetes de musgo dos pinhais do Painho às alcatifas dos centros comerciais. Nada se compara a um passeio matinal pelo campo e sentir o cheiro da erva molhada e admirar as gotas de orvalho nos cardos.
O Painho continua a ser a minha sombra. Quando caminho pelas ruas, a sombra que projeto não é da minha silhueta: é da igreja do Painho, do coreto do arraial, dos restolhos de trigo, das minas de água fresca, do canto dos galos a anunciar um novo dia, dos chafarizes e dos estendais de roupa a cheirarem a sabão azul e branco.
Quando e como descobre que tem talentos emergentes, “ímpetos” que o levam a criar arte?
Desde os tempos de escola que tive inclinações estéticas. Na primária, tinha jeito para o desenho e na aldeia era requisitado para fazer pequenos trabalhos artísticos e tudo o que fosse bricolage: colar uma travessa de porcelana que se tinha partido à Ti Mari Relhas; restaurar uma ceia de Cristo da prima Leopoldina; dar retoques numa fotografia antiga do sacristão; recortar cortinas de papel para embelezar as grades de pendurar os tachos da avó Lucília. Para a avó Lucília eu era uma espécie de ourivesaria ambulante: dizia a toda a aldeia que eu tinha umas mãozinhas de prata e um coração de ouro.
Outras vezes, com restos de lençol de pano-cru, que pregava em ripas de madeira arrancadas das caixas de embalar tomates, improvisava telas, que pintava e oferecia à tia Lena e à tia Hermínia. Ainda hoje, volvidos quase 50 anos, as conservam, penduradas nas paredes da sala, ao lado de fotografias dos filhos e netos. As telas eram todas semelhantes: uma casa ao lado de uma torre sineira, com uma cerca de madeira à volta; dois ou três pinheiros e cumes de serra ao fundo, que contrastavam com meia dúzia de nuvens. Quando estava inspirado, acrescentava-lhes duas andorinhas. As andorinhas, que na altura anunciavam a primavera e a despedida do verão, alinhadas nos fios de eletricidade, sempre fizeram parte do meu imaginário.
Ainda que tudo apontasse para que viesse a enveredar pelo campo da arte, a vida ofereceu-me outros caminhos. A vida na aldeia não era fácil e a perspetiva de um percurso académico nessa área nem sequer se colocava. Em vez de prosseguir os estudos, fiquei atrás de um balcão, a aviar copos de vinho, colorau para temperar os enchidos ou sabão amarelo para lavar os soalhos de madeira.
De qualquer modo, o bichinho para as artes nunca esmoreceu e entre um copo de vinho tinto e uma quarta de colorau ia pintando pratos de louça e rabiscando andorinhas.
E tem sido assim, até hoje, a minha incursão pelas artes, criando obras, que vão da escultura, à colagem e à pintura, que tenho oferecido à família e às pessoas que me são mais próximas.
Mais recentemente, a par da atividade profissional tenho-me envolvido em vários projetos artísticos, de que destacaria, para além do livro a que já me referi, “A Caixa – 10 anos de vigilância eletrónica em Portugal “, um projeto escultórico de 2012, que retrata histórias e vivências relacionadas com o cumprimento de medidas e penas judiciais fiscalizadas com meios eletrónicos.
“A Caixa” foi, porventura, o projeto artístico mais ambicioso que fiz até hoje e é considerado um trabalho pioneiro e único a nível mundial.
“Ímpetos” é o título que dá à exposição de um conjunto admirável de obras. Porquê esse título?
A experiência do ato criativo é sempre um rasgão na quotidianidade, que presentifica sentidos até então ocultados. No meu caso, esse rasgar transporta-me para lá do tempo dos calendários, num ímpeto espontâneo e descontrolado. Fora desse quadro de espontaneidade a criatividade está-me vedada.
Quando pinto, o tempo pára. O sino da igreja da Graça continua a assinalar a passagem das horas mas eu deixo de o ouvir.
Quando me atrevi, em 2018, a expor pela primeira vez os meus quadros, o título “Ímpetos” impôs-se naturalmente. Não poderia ser outro!
Pode descrever-nos um pouco como, em si, se desenvolve todo o processo desde a inspiração à criação?
Apesar de ter um turbilhão de ideias e imagens que gostaria de retratar, quando inicio um quadro, embarco numa viagem sem destino. Como o ato de lançar sementes à terra, lanço as tintas na tela. Sem orientação, ao deus-dará. Apenas seleciono as cores e, mesmo essas, acabam por revelar a sua rebeldia e criar tonalidades inesperadas.
À medida que, com espátulas e outros artefactos (raramente recorro aos pincéis) vou resgatando cores e formas às manchas de tinta que vão lavrando a tela, são-me oferecidas, com generosidade e abertura, hipóteses de imagens, evocações de ambientes ou horizontes de sentido por explorar.
Só nessa fase é que eu entro. Até aí, a obra foi de outrem. Eu apenas procuro desocultar essa dádiva, e trazê-la à presença do olhar, com alguma provocação e ironia.
A partir dessa criação primordial e incógnita, lanço-me à descoberta de paisagens improváveis, cidades imaginadas ou ambientes enigmáticos, a partir das minhas memórias, fantasias, devaneios filosóficos e inclinações estéticas.
O resultado das suas criações são sempre o que esperava obter quando, inicialmente, surge a inspiração?
Tal como já disse, quando inicio um quadro, não tenho em mente nada de concreto. O resultado final é sempre inesperado e de espanto que, em alguns casos, me assusta e desassossega. Por vezes, vislumbro formas que parecem apontar para ambientes campestres, e desemboco em labirintos oceânicos, florestas encantadas ou meros jogos cromáticos, sem qualquer pretensão evocativa.
Outras vezes, guiado por memórias de infância, dou por mim a tentar dar cor ao cheiro da terra molhada e a revisitar os restolhos de trigo do Painho, que eu pisava descalço, e sou desviado para outros destinos. Em vez de pão, surgem rosas, como no milagre.
Já me aconteceu também reformular alguns quadros. A título de exemplo, o quadro do cartaz da exposição ÍMPETOS.2, a que dei o título “em memória do avô Galdês” foi repintado. Inicialmente, apenas tinha as tonalidades de fundo (que não foram alteradas) e era para ser exposto com o título “Ausência”. À última hora, veio-me à memória a silhueta de uma velha pereira que havia no Murtório, uma das fazendas para onde ia todos dias de carroça com o meu avô Galdês. Era uma árvore de porte imponente e altivo. Dava umas peras enormes e suculentas, conhecidas por “peras três ao prato”. Três peras enchiam um prato. Como queria manter a ideia original de ausência desenhei a pereira, mas sem as peras.
Na exposição que acabo de inaugurar foi um dos quadros que despertou mais reações. Houve quem me dissesse que o quadro tem alma e que o avô Galdês, estando ausente, está ali presente.
Quando resolveu partilhar as suas obras com o público? Como foi a sua primeira exposição?
Uma colega de trabalho andava há uns tempos a pedir-me para eu lhe pintar um quadro para colocar no seu gabinete. Em Dezembro de 2017, aproveitando uma tela em que tinha pintado um fundo vermelho para fazer um trabalho para oferecer à escola do Painho, que entretanto reformulei, resolvi finalmente fazer-lhe a vontade, tendo surgido assim o primeiro quadro, a que dei o título de “cidade de fogo”.
Quando lhe entreguei o quadro, ficou de tal modo agradada, que o mostrou a outros colegas, que teceram rasgados elogios e me espicaçaram para continuar a pintar. Impulsionado por tais incentivos, pus mãos à obra. E assim surgiram “cidade de fogo 2” e “cidade de fogo 3”.
Ao fim de 6 meses deparei-me com um conjunto significativo de quadros e a ideia de os expor começou a germinar. Em Julho de 2018 aí estava “ÍMPETOS”, na galeria “Arte Graça”, equipamento cultural da Junta de Freguesia de S. Vicente.
A reação do público superou todas as minhas expectativas. No dia da inauguração fui apanhado de surpresa. As pessoas não só gostaram dos quadros como os queriam adquirir. Quando tive a ideia de expor era apenas isso: expor.
Confesso que tive alguma dificuldade em lidar com a situação, pois, de algum modo, tinha criado uma ligação afetiva e quase umbilical com a maioria dos quadros e não me estava a ver a transformar essa ligação numa relação comercial.
Aos poucos, fui rebuscando argumentos de ordem prática para quebrar essa ligação – a falta de espaço em casa, as vantagens de assim poder comprar mais telas e tintas, entre outras – e lá consegui resolver o dilema. Resultado: dos 46 quadros expostos, vendi 44. Nos restantes 2 coloquei uma etiqueta de “reservado”, fintando assim a sua provável venda.
Olhando agora, em jeito de retrospetiva, não posso deixar de afirmar que a exposição foi na verdade um estrondoso sucesso, do qual não estava à espera. Nos comentários do livro, houve quem escrevesse que eu sou, porventura, um dos maiores talentos emergentes da atualidade. Houve até quem me comparasse a Almada Negreiros, comentário que me deixou perplexo e em estado de desassossego.
Tem projetos futuros? Ou para si é tudo inesperado resultando de imprevistos?
Prefiro continuar a jogar no campo do imprevisto. A vida é uma dádiva, que nos oferece, com generosidade, horizontes por explorar e sentidos à espera de serem desocultados, no tempo certo. Um tempo não programável nem antecipável.
Como sou obsessivo em tudo o que faço, quando embarco num projeto procuro tocar nas estrelas e pisar o transcendente, até à exaustão do corpo. Quando o concluo fico, literalmente, exausto e com um sentimento de vazio. Depois, recupero, volto a pisar o chão e habituo-me de novo à quotidianidade.
Em Janeiro tive uma exposição no Cadaval e presentemente tenho na galeria “Arte Graça” a exposição “Ímpetos.2”. Como devem calcular, ainda estou na fase de recuperação, o que não significa que esteja em poisio. Ideias não me faltam. Mas há um tempo para a descoberta e outro para a realização. Nesta fase, estou ainda no primeiro.
Quer deixar-nos alguma mensagem específica para partilharmos com os nossos leitores sobre si.
Nunca deixem de sonhar e encarem a vida como uma dádiva.
Olhem para a natureza que nos rodeia e tentem ver para além do óbvio. O sentido da vida e do mundo pode estar ao virar da esquina: no vermelho da romã e das papoilas, no cheiro da hortelã, no assobio do melro ou no barulho da chuva.
Na sua opinião o que deve ser feito para incentivar mais o gosto dos jovens pelas artes?
Num mundo frenético e contaminado pelo mediatismo, como a época em que vivemos, impõe-se cada vez mais que a arte ocupe um lugar cimeiro entre os saberes.
Partilho a opinião, nem sempre consensual, de que a dimensão estética é a que melhor define a natureza do ser humano, enquanto ser que está aí, envolto pelas coisas do mundo. “A rosa é bela sem porquê”: ter a aptidão de apreciar o mundo que nos rodeia e emitir um juízo destes, é o que melhor nos distingue dos outros animais.
Os animais têm estratégias de sobrevivência, capacidades para construir ninhos e tocas e adaptar-se a ambientes adversos. Mas, que se saiba, não emitem juízos estéticos nem se comovem com a beleza do mundo.
Uma forma de desenvolver essa capacidade de apreciar o mundo e desenvolver nos jovens o gosto pelas artes tem que, forçosamente, passar por um reforço de disciplinas dessa área nos programas curriculares do ensino secundário.
Como vê o atual momento cultural artístico em Portugal? Como sobreviver de arte num país como Portugal?
Creio que o atual panorama artístico em Portugal está com uma grande dinâmica, que se traduz numa oferta cultural diversificada e acessível. Para tanto contribui o movimento de descentralização a que temos assistido nos últimos anos. Hoje, a cultura já não é um exclusivo dos grandes centros urbanos. Há centros culturais espalhados pela província, companhias de teatro e bailado sediadas em cidades do interior e inúmeros eventos a acontecer de norte a sul do país.
Quanto a sobreviver da arte a questão é mais complexa. O meio artístico é muito competitivo e nem sempre é dada a devida visibilidade aos talentos emergentes. Há como que um círculo fechado, a que poucos artistas têm acesso, que dificulta a saída do anonimato. Estou seguro que há um número significativo de artistas que ficam a meio do caminho, não pela falta de mérito mas por não conhecerem os circuitos e as pessoas certas.
Que mais dizer do homem e artista que a propósito de uma das suas obras “a Árvore da Vida”, escreve:
“Diferente da outra – a do Paraíso – a Árvore da Vida não dava frutos. Depois de estender os seus ramos até ao infinito e tocar na seiva primordial, inclinou-se sobre o charco da Terra e fecundou-a, inaugurando, com esse movimento de generosidade e criação, o eterno ciclo da vida”,
se não dizer que o admiramos e que desejamos que os seus ímpetos artísticos não terminem nunca.
Exposição de Pintura Ímpetos.2 de Jorge Romão – Até ao dia 07 de abril de 2019, de quinta a domingo, entre as 16h e as 20h, não perca a oportunidade de apreciar as obras expostas na:
Rua da Graça,no 27-29, Lisboa.