Senhora da Cola, uma romaria de Nossa Senhora da Cola, da Misericórdia de Ourique, que entre os dias 7 e 8 de setembro, como tantas outras romarias por terras portuguesas, atraía centenas de visitantes. Vivemos um tempo muito particular, que nos obriga a manter o afastamento físico dos que nos são queridos e nos impedem de festejar e cumprir tradições seculares. Nas palavras de Vítor Encarnação:
“Este ano não há, mas se houvesse, para mim, seria mais ou menos isto:”
Senhora da Cola
Sei que este pó é o pó da minha infância porque o sinto na memória da pele. Conheço bem aqueles declives de terra e de tempo que passaram pela história dos meus olhos. ( Só é pena as bolotas não estarem já maduras ).
A música escancara o resto das lembranças. Os tambores – principalmente os tambores – dão voz à romaria, avivam-na, acentuam-na e as fardas azuis da banda filarmónica são um exército que reconquista o largo e o põe nos meus braços.
O largo, esse, está adornado de fitas, caiado de luz, temperado de hortelã.
As mulheres ougam o chão para desmanchar a força do calor e o cheiro das junças molhadas levanta-se tomando conta do ar, vestindo-o de grave, dando-lhe um sabor a ribeira.
Nalguns rostos notam-se os despojos da noite pagã.
Talvez restos de uma bebedeira de vinho ou de olhos. Ou de ambos.
Mas agora é hora de crer. A igreja é branca e as barras são azuis porque foi o céu que lhas fez.
O adro está pejado de gente. Pulsando. É ali o centro do mundo, o coração da serra, o útero do culto, o colo da Santa onde aquela gente toda se aconchega. É ali, no meio das pedras em torno da igreja que se ouvem ainda os gemidos de outros tempos das promessas pagas com o sangue dos joelhos derrubados, dos peitos rasgados. É ali, naquele miradouro de Deus que se dão velas do tamanho de cada dor que se tem, que se oferta a alma por cada vazio que se sente, que se reza uma oração por cada vida que se desmorona.
As lajes da entrada lavam os pés aos que acreditam. E em frente ao altar dourado o silêncio põe-se de joelhos.
Dobra-se. Quebrado. Em prece. Agradecendo, pedindo, suplicando. As mãos juntas agarram a força que vem do céu da igreja de Nossa Senhora da Cola. A fé está ali. Pressente-se.
Celebra-se a missa. O ar está quente por causa das velas e da exaltação.
Saboreia-se o corpo de Deus na boca.
Sai a procissão. Mulheres e homens selectos, num cortejo de entrega às alturas.
O andor assenta em cima dos ombros dos homens. São eles que carregam um peso que não é peso. É apenas o sopro do firmamento que lhes toca no corpo. Ou melhor, é como se a Santa os sustentasse a eles todos. À volta da igreja, a imagem da Santa é um farol que guia aquela fileira de gente, uma luz que redime e guia aqueles passos.
Alguns trocados. Outros perdidos. A estes quem lhes dera saber ter fé. Quem lhes dera poder acreditar no que fazem.
Há de tudo. Principalmente quando o mundo lhes esmaga os ombros na procissão da vida.
Gosto de lá ir.
Mais não sei dizer.
Do autor Vítor Encarnação pode ler:
A nossa praia, de Vítor Encarnação
A vida é um rio, de Vítor Encarnação
Luz, um texto de Vítor Encarnação
Encruzilhada, um texto de Vítor Encarnação;
Abraço, um texto de Vítor Encarnação
A serenidade nos tempos de vírus – Vítor Encarnação
Flor de Laranjeira, Vítor Encarnação
Já nada existe antes da primavera, Vítor Encarnação
Amor impossível, Vítor Encarnação
Levantar Cedo, Vítor Encarnação
Esquecimento, Vítor Encarnação
O Livro do Tempo, Vítor Encarnação
Contentamento, Vítor Encarnação
Entrevista de Vítor Encarnação
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